I – AUTOR, ÉPOCA E PROPÓSITO
1- O discípulo amado.
João, filho de Zebedeu e irmão de Tiago, também discípulo de Jesus (Mt 4.21), é o autor desse “Evangelho espiritual”, como assim o chamou Clemente de Alexandria (150-215 d.C.). O livro traz várias referências ao discípulo “a quem Jesus amava” (Jo 13.23; 19.26; 20.2) e encerra com a expressão: “Este é o discípulo que testifica dessas coisas e as escreveu” (Jo 21.24).
João trabalhava com o pai e o irmão no ramo da pesca (Mc 1.19,20). Tornou-se um dos discípulos mais próximos de Jesus, ao lado de Pedro e Tiago, tendo o privilégio de estar presente em momentos ímpares, como na transfiguração (Mt 17.1). O que muito se destaca na vida de João, portanto, é sua intimidade com Jesus (Jo 13.25).
2- O apóstolo do amor.
O Evangelho de João foi o último a ser escrito. Não há uma data específica, mas registros dos primeiros séculos indicam ter sido entre os anos 80 e 95 d.C. Nessa época, e nos séculos seguintes, foram intensos os debates teológicos em torno das doutrinas centrais da fé cristã. Muitas heresias foram forjadas pelo judaísmo, que tentou se reestabelecer após a Diáspora, ocorrida depois de 70 d.C., quando aconteceu a destruição de Jerusalém. Também no seio do cristianismo surgiram muitos hereges. Dentre os falsos ensinos destaca-se o que negava a divindade de Jesus.
O amoroso apóstolo João, o mesmo autor de 1, 2 e 3 João e do Apocalipse, havia estabelecido muitas igrejas, especialmente na Ásia Menor. Foi justamente de lá, mais precisamente de Éfeso, que escreveu seu Evangelho, cujo escrito serviu para solidificar a fé de cristãos não somente de seu tempo, mas de todas as épocas, chegando até nós.
3- Evangelista e apologista.
O diligente pastor João, já idoso, era também evangelista e apologista. Seu Evangelho tem esse duplo caráter, sobressaindo nele uma firme apologia da doutrina central da fé cristã. Esse propósito é diretamente anunciado por ele, quando, após registrar os sinais que evidenciavam a divindade de Cristo, afirmou: “Estes, porém, foram escritos para que creiais que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e que para que, crendo, tenhais vida em seu nome” (Jo 20.31). O Evangelho de João tem, portanto, crucial importância tanto para a propagação das Boas-Novas da Salvação aos que ainda não creem, quanto para a firmeza e permanência da nossa fé, através da vida que somente no Filho de Deus podemos ter.
II – A RIQUEZA DOUTRINÁRIA DO EVANGELHO DE JOÃO
1- A Cristologia e a Trindade.
A riqueza doutrinária do Evangelho de João é simplesmente surpreendente. Já nos primeiros 34 versículos do primeiro capítulo do Livro é possível encontrar revelações claras e profundas acerca das principais doutrinas da Bíblia.
A doutrina de Deus, dentro da compreensão da Trindade (“um só Deus, eternamente subsistentemente em três pessoas que, embora distintas, são iguais em poder, glória e majestade”, conforme nossa Declaração de Fé), levaria cerca de três séculos para ser bem compreendida e sistematizada pela cristandade, mas ali estava, de maneira inequívoca, o registro acerca das pessoas do Deus Pai, do Deus Filho e do Deus Espírito Santo, com indicação, inclusive, do papel primordial de cada uma delas.
Depois de falar do Filho, como o Verbo que sempre esteve com o Pai, João apresenta o Espírito Santo, aquele que outro João, o Batista, viu “descer do céu como uma pomba e repousar sobre ele” (Jo 1.32). O Espírito é o que convence o mundo do pecado, da justiça e do juízo (Jo 16.8), tem papel imprescindível na regeneração (Jo 3.5; 20.22) e é indispensável para uma vida cristã vitoriosa (Jo 14.16-18,26).
2- Cristo, o Deus Criador.
João não apenas refere-se a Cristo como um Ser Divino, mas apresenta desde logo seus principais atributos, como a eternidade, a Onipotência, a Onipresença e a Onisciência, pois o situa “no princípio”, na eternidade passada, agindo com e como Deus: “No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus” (Jo 1.1).
Quando houve esse “princípio”, que foi revelado a Moisés (Gn 1.1), Cristo já existia como verdadeiro Deus, Eterno, sem princípio; incriado. Ele, aliás, participou com o Pai e o Espírito da obra da criação: “Todas as coisas foram feitas por ele, e sem ele nada do que foi feito se fez” (Jo 1.3). Cristo, portanto, é também Deus Criador. Por isso, Gênesis registra a ação plural: “Façamos o homem, à nossa imagem, conforme a nossa semelhança” (Gn 1.26) e Paulo afirma que “ele [Cristo] é antes de todas as coisas, e todas as coisas subsistem por ele” (Cl 1.17).
3- Cristo no Antigo Testamento.
O discípulo amado também sintetizou, em um versículo apenas, a livre e permanente agência de Cristo desde o Éden e por todo o Antigo Testamento até sua encarnação, quando diz: “Nele, estava a vida e a vida era a luz dos homens” (Jo 1.4). Um dos exemplos está na declaração paulina aos coríntios: “Ora, irmãos, não quero que ignoreis que nossos pais estiveram todos debaixo da nuvem; e todos passaram pelo mar, e todos foram batizados em Moisés, na nuvem e no mar, e todos comeram de um mesmo manjar espiritual, e beberam todos de uma mesma bebida espiritual, porque bebiam da pedra espiritual que os seguia; e a pedra era Cristo” (1 Co 10.1-4).
Cristo, portanto, não foi um mero assistente junto ao Pai desde Adão. Seja de forma teofânica, seja através de tipos, o Deus Filho esteve presente em toda a Antiga Aliança, aguardando o tempo em que haveria de se manifestar, encarnado, para a obra prometida ainda no Éden: que da semente da mulher nasceria um que pisaria a cabeça da serpente (Gn 3.15).
III – CRISTOLOGIA: SINAIS, SERMÕES E DECLARAÇÕES
1- Os sinais miraculosos.
O Evangelho de João apresenta o Jesus homem manifestando sua glória como o Unigênito do Pai (Jo 1.14). A completa humanidade de Cristo em perfeita consonância com sua completa divindade. As narrativas dos milagres apresentam Jesus homem de forma natural, como um convidado comum para uma festa de casamento, por exemplo, realizando sinais sobrenaturais, próprios de alguém absolutamente incomum, divino, Todo-Poderoso, capaz de transformar água em vinho (Jo 2.1-11) e realizar inúmeros outros milagres. Tais sinais tinham como finalidade demonstrar que Ele e o Pai são Um (Jo 10.30; 14.9,10), sem prejuízo algum de sua completa sujeição ao Pai através da encarnação (Fp 2.5-11), para cumprir a obra de redenção de todo aquele que nEle crer (Jo 3.14-18;10.1-18; 17.20).
Registrados por João, há mais seis sinais: a cura do filho de um oficial do rei (Jo 4.43-54), a cura de um paralítico de Betesda (Jo 5.1-15), a multiplicação de pães e peixes (6.1-15), Jesus andando sobre as águas do Mar da Galileia (Jo 6.16-21), a cura de um cego de nascença (Jo 9.1-41) e a ressurreição de Lázaro (Jo 11.1-45). Muitos outros não estão escritos, e, conforme disse João (em hipérbole), se tudo o que Jesus fez fosse escrito “nem ainda o mundo todo poderia conter os livros que se escrevessem” (Jo 21.25).
2- Os sermões cristológico.
É muito importante considerar como as Escrituras valorizam a exposição das doutrinas. Os sinais são importantes, mas não são suficientes. As multidões precisavam não apenas crer no Messias como Deus, capaz de realizar milagres, mas como o necessário e sufi ciente Salvador e Senhor. Isso está muito claro nas mensagens de Jesus, a começar pelo sermão que pregou para Nicodemos. A primeira coisa que fez esse fariseu, príncipe dos judeus, foi reconhecer que Jesus era um “mestre vindo de Deus”, justamente por causa dos sinais (Jo 3.2).
Mas era imperativo que Nicodemos reconhecesse sua necessidade pessoal de salvação. Como diz Matthew Henry, “Não era sufi ciente que ele admirasse os milagres de Cristo, e reconhecesse sua missão; ele devia nascer de novo”. Por isso Jesus disse-lhe logo: “Na verdade, na verdade te digo que aquele que não nascer de novo não pode ver o Reino de Deus” (Jo 3.3). Que declaração fundamental! A mesma revelação do aspecto salvífico de seu ministério Ele apresentaria no sermão pregado à mulher samaritana (Jo 4.4-42) e em outros cinco sermões registrados por João (Jo 5.16-47; 6.37-44; 8.12-30 e 10.1-21). Com isso Jesus nos deu o exemplo de que é preciso pregar, pois a “fé é pelo ouvir, e o ouvir pela palavra de Deus” (Rm 10.17).
3- As declarações divinas.
Além dos sinais e dos sermões, o Evangelho de João traz sete declarações de Jesus que revelam sua deidade. Em todas elas, Ele se apresenta como o “EU SOU’, o mesmo Deus que se manifestou a Moisés como “o Deus de Abraão, o Deus de Isaque e o Deus de Jacó” (Êx 3.14,15). Em João esse Deus Único e Eterno se revela nas figuras do “pão da vida” (Jo 6.35), da “luz do mundo” (Jo 8.12), da “porta” ( Jo 10.9), do “bom Pastor” (Jo 10.11,14), da “ressurreição e a vida” (Jo 11.25), do “caminho, e a verdade, e a vida” (14.6) e da “videira” (Jo 15.1,5).