O Sacrifício Pacífico: A Comunhão
Quanto mais atentamente consideramos as ofertas, mais amplamente
vemos que nenhum sacrifício apresenta um tipo completo de Cristo. É só as
comparando em conjunto que se pode obter uma ideia algo tanto exata. Cada
oferta, como era de esperar, tem as suas próprias características. O sacrifício
pacífico difere do Holocausto em muitos pontos; e uma compreensão clara dos
pontos em que qualquer figura difere das outras ajudar-nos-á a compreender o
seu significado especial.
A Diferença entre o Holocausto e o Sacrifício de Pacífico
Assim, quando comparamos o sacrifício pacífico com o
holocausto, descobrimos que o tríplice ato de "esfolar", "partir
em pedaços" e "lavar a fressura e as pernas" é inteiramente
omitido. Mas isto é natural. No holocausto, como temos notado, encontramos
Cristo oferecendo-se a Si mesmo a Deus e sendo aceito. Por isso tinha de ser
simbolizada não só a Sua inteira rendição como também o processo de
perscrutação a que Ele se submeteu. Na oferta pacífica o pensamento principal é
a comunhão do adorador. Não é Cristo como objeto exclusivamente deleitável para
Deus, mas de gozo para o adorador, em comunhão com Deus. Por isso a ação é
menos intensa, em toda a linha.
Nenhum coração, por muito elevado que seja o seu amor, pode,
de modo algum, elevar-se à altura da dedicação de Cristo a Deus ou da aceitação
de Cristo por Deus. Ninguém senão o próprio Deus podia anotar devidamente as
pulsações do coração que batia no seio de Jesus; e, portanto, era necessário um
símbolo para mostrar este aspecto da morte de Cristo, a saber, a Sua perfeita
dedicação a Deus na morte. Este símbolo têmo-lo no holocausto, a única oferta
em que observamos a ação tríplice a que acima nos referimos.
Assim também em referência ao caráter do sacrifício. No
holocausto, a vítima devia ser "macho sem mancha"; ao passo que no
sacrifício pacífico podia ser "macho ou fêmea", contanto que não
houvesse neles qualquer mancha. A natureza de Cristo, quer O consideremos como
sendo apreciado exclusivamente por Deus ou pelo adorador em comunhão com Deus,
deve ser sempre a mesma. Não pode haver alteração nela. A única razão por que
era consentido oferecer uma fêmea no sacrifício pacífico era para se avaliar a
capacidade do adorador quanto à apresentação do bendito Ser que, em Si mesmo,
"é o mesmo ontem, hoje e para sempre" (Hb 13).
Além disso, no holocausto lemos, "o sacerdote tudo
queimará"; ao passo que no sacrifício pacífico só uma parte era queimada,
isto é, "a gordura, os rins e o redenho". Isto torna o caso muito
simples. A porção mais excelente do sacrifício era posto sobre o altar de Deus.
As entranhas — as ternas sensibilidades do bendito Jesus eram dedicadas a Deus
como o único que podia perfeitamente apreciá-las. Aarão e seus filhos
alimentavam-se do "peito" e da "espádua direita" (')
(Veja-se atentamente Lv 7:28-36). Todos os membros da família sacerdotal, em
comunhão com o seu chefe, tinham a sua própria porção da oferta pacífica. E
agora todos os verdadeiros crentes, constituídos pela graça sacerdotes para
Deus, podem alimentar-se das afeições e da força da verdadeira oferta pacífica
— podem f ruir a feliz certeza de terem o seu coração amantíssimo e o Seu ombro
poderoso para os confortar e suster continuamente (2)." Esta é a porção de
Arão e a porção de seus filho, das ofertas queimadas do Senhor, no dia em que
os apresentou para administrar o sacerdócio ao Senhor. O que o Senhor ordenou
que se lhes desse dentre os filhos de Israel no dia em que os ungiu estatuto
perpétuo é pelas suas gerações" (Lv 7:35-36).
(1) "O peito" e "a espádua" são
emblemáticos de amor e poder — força e afeição.
(2) Há força e beleza no versículo 31: "... o peito
será de Aarão e de seus filhos". É privilégio de todos os verdadeiros
crentes alimentarem-se das afeições de Cristo — do amor imutável desse coração
que bate com amor imortal e imutável por eles.
Uma Porção Comum entre Deus e os Sacerdotes
São importantes todos estes pontos de diferença entre o
holocausto e o sacrifício pacífico; e quando considerados em conjunto, mostram
com grande clareza as duas ofertas perante a mente. No sacrifício pacífico há
mais alguma coisa do que a dedicação abstrata de Cristo à vontade de Deus. O
adorador é apresentado, não simplesmente como espectador, mas como participante
não apenas para observar, mas para se alimentar. Isto dá um caráter notável a
esta oferta. Quando observo o Senhor Jesus no holocausto, vejo-o como Aquele
cujo coração foi consagrado ao objetivo de glorificar Deus e cumprir a Sua
vontade. Mas quando O vejo no sacrifício pacífico, descubro aquele que tem um
lugar no Seu coração amantíssimo e sobre os Seus ombros poderosos para um
pecador indigno e desamparado. No holocausto, o peito, as pernas e as
entranhas, a cabeça e a gordura, tudo era queimado em cima do altar — tudo
subia como cheiro suave a Deus. Porém no sacrifício pacífico a própria porção
que me convém é reservada para mim. E não tenho de alimentar-me daquilo que
satisfaz a minha própria necessidade na solidão. De modo nenhum. Alimento-me em
comunhão com Deus e em comunhão com os meus companheiros no sacerdócio.
Alimento-me com o perfeito e feliz conhecimento que o mesmíssimo sacrifício
que nutre a minha alma tem já satisfeito o coração de Deus; e, além disso, de
que a mesma porção que me alimenta também alimenta todos os meus companheiros
em adoração. A ordem da comunhão encontra-se aqui — comunhão com Deus e
comunhão com os santos. Não havia nada que se parecesse com isolamento na
oferta pacífica. Deus tinha a Sua porção e a família sacerdotal tinha a sua.
Assim é com o Antítipo do sacrifício pacífico. O mesmo Jesus
que é o objeto das delícias do céu é a fonte de gozo, de força e de conforto
para todo o coração crente; e não só para cada coração, em particular, mas
também para toda a Igreja de Deus, em comunhão. Deus, em Sua infinita graça tem
dado ao Seu povo o mesmo objetivo que Ele tem. "A nossa comunhão é com o
Pai e com seu Filho Jesus Cristo" (1 Jo 1:3). É verdade que os nossos
pensamentos acerca de Jesus nunca poderão chegará altura dos pensamentos de
Deus. A nossa apreciação de um tal objeto deve ficar sempre muito aquém da Sua;
e, por isso, no símbolo, a casa de Arão não podia participar da gordura.
Mas, apesar de nunca podermos atingir o padrão de apreço
divino da Pessoa de Cristo e do Seu sacrifício, estamos todavia ocupados com o
mesmo objeto e portanto a casa de Arão tinha "o peito e a espádua
direita". Tudo isto está repleto de conforto e alegria para o coração. O
Senhor Jesus Cristo—Aquele que "foi morto, mas vive para todo o sempre",
é agora o objeto exclusivo ante os olhos e pensamentos de Deus; e, em graça
perfeita, Deus deu-nos uma parte nesta mesma bendita e gloriosa Pessoa. Cristo
é também o nosso objetivo — o objetivo dos nossos corações e tema do nosso
cântico. "Havendo feito a paz, pelo sangue da sua cruz", subiu ao céu
e enviou o Espírito Santo, o "outro Consolador", por cujo ministério
poderoso nos alimentamos do "peito e da espádua direita" do divino
"Sacrifício Pacífico". Ele é, na verdade, a nossa paz; e temos o gozo
inexcedível de saber que o agrado de Deus na obra da nossa paz é tal que o
cheiro suave da nossa oferta pacífica deu alegria ao Seu coração. Este fato dá
um encanto peculiar a este símbolo. Cristo, como holocausto, desperta a
admiração dos nossos corações; Cristo, como sacrifício pacífico, estabelece a
paz da consciência e satisfaz as múltiplas e profundas necessidades da alma. Os
filhos de Arão podiam prostrar-se em redor do altar do holocausto: podiam
observar como a chama desse sacrifício subia para o Deus de Israel; podiam ver
o sacrifício reduzido a cinzas; podiam, à vista de tudo isto, curvar as suas
cabeças e adorar; mas ao retirarem-se nada levavam para si mesmos. Não sucedia
o mesmo com o sacrifício pacífico. Neste eles viam não só o que podia emitir um
cheiro suave para Deus, mas também render uma porção substancial para si
mesmos, da qual podiam alimentar-se em feliz e santa comunhão.
O Gozo da Comunhão
E, certamente, é motivo de grande alegria para todo o
verdadeiro sacerdote saber (para empregar a linguagem do nosso símbolo) que
Deus teve a Sua parte, antes de ele receber o peito e a espádua. Este
pensamento dá força e fervor, engrandecimento e alegria ao culto e à comunhão.
Revela a graça maravilhosa d'Aquele que nos deu o mesmo objetivo, o mesmo tema,
e a mesma alegria que Ele tem. Nada inferior—nada menos do que isto podia
satisfazê-Lo. O Pai quer que o pródigo se alimente do bezerro cevado, em
comunhão consigo. Não lhe dá um lugar inferior à Sua própria mesa, nem qualquer
outra porção senão aquela de que Ele Próprio se alimenta. A linguagem do
sacrifício é esta: "era justo alegrarmo-nos e folgarmos" —
"comamos e alegremo-nos". Tal é a preciosa graça de Deus! Sem dúvida,
temos motivos para nos alegrarmos, pois participamos de uma tal graça. Porém,
quando podemos ouvir o bendito Deus dizer "comamos e alegremo-nos",
dos nossos corações devia brotar uma corrente contínua de louvores e ações de
graças. O gozo de Deus na salvação de pecadores e o Seu gozo na comunhão dos
santos podem muito bem despertar a admiração dos homens e dos anjos por toda a
eternidade.
A Diferença entre a Oferta de Manjares e o Sacrifício
Pacífico
Havendo assim comparado o sacrifício pacífico com o
holocausto, podemos, agora, observar rapidamente a sua relação com a oferta de
manjares. Aqui o ponto principal de diferença é este: no sacrifício pacífico
havia derramamento de sangue; na oferta de manjares não. Ambos eram ofertas de
"cheiro suave"; e, como aprendemos no capítulo 7:12, as duas ofertas
estavam intimamente ligadas entre si. Ora, tanto a relação como o contraste são
cheios de significado e instrução.
É só em comunhão com Deus que a alma pode deleitar-se na
contemplação da humanidade perfeita do Senhor Jesus Cristo. Deus o Espírito
Santo deve dar assim como deve dirigir, pela Palavra, a visão mediante a qual
podemos contemplar o "Homem Cristo Jesus". Ele podia ter sido
revelado "em semelhança da carne do pecado"; podia ter vivido e
laborado na terra; podia ter brilhado entre as trevas deste mundo, em todo o
fulgor celestial e beleza inerente à Sua Pessoa; podia ter passado rapidamente,
como astro brilhante, através do horizonte deste mundo; e durante todo o tempo
ter permanecido fora do alcance da visão do pecador.